terça-feira, 27 de março de 2012

Rachel também era gastrônoma...



A COZINHA SÓBRIA DE RACHEL 
DE QUEIROZ

Livro póstumo revela a paixão da escritora pela cozinha elementar do sertão

Rachel de Queiroz ficou conhecida pela literatura produzida a partir da fome. O quinze, seu romance mais notório, descreve a hecatombe provocada pela grande seca no sertão nordestino de 1915. Uma tragédia vivida pela própria escritora. Num dos momentos mais marcantes, um dos personagens envenena-se, tamanho desespero, ao comer mandioca crua, raiz que só perde seu letal ácido cianídrico processada pelo fogo para transformá-la, comumente, em farinha. Mas a escritora responsável pela renovação do regionalismo na literatura brasileira não era, como Josué de Castro, essencialmente uma cronista da escassez. Apaixonada pela cozinha do mesmo Sertão que nem sempre alimentava, Rachel de Queiroz (1910 - 2003), pouco antes de morrer, escreveu um belo e apaixonado tratado sobre a culinária sertaneja.

Rachel também era gastrônoma. E reclamava da pouca atenção dedicada pela intelectualidade brasileira à cozinha. “Uma literatura de que os grandes nomes do Brasil pouco cuidaram foi a que diz respeito à culinária, com exceção - e que exceção! - de Gilberto Freyre. Gilberto nobilitou o tema. Fugindo à clássica cozinha portuguesa adaptada e, principalmente, à obrigatória cozinha baiana. Verdade que ele tratava da maior rival da cozinha baiana, a de Pernambuco. E nesse Pernambuco incluam as cozinhas adjacentes, subindo até o Ceará”, discorre Rachel na apresentação do póstumo Não me deixes - suas histórias e sua cozinha, lançado pela Editora Arx. No livro com o nome da fazenda da família onde passou os primeiros anos, a imortal ensina receitas e apresenta a cozinha nordestina.

Pelas palavras de Rachel de Queiroz, a cozinha do sertão é como sua literatura: forte e generosa. É ainda uma cozinha simples, rústica, ancestral e, mais do que tudo, elementar. Sem recursos para os molhos exigentes de caras reduções de ingredientes, valoriza cada artigo de seu repertório na integridade. Uma cozinha pronta para seduzir pela sobriedade. “A carne cozida ou assada no espeto, acompanhada pelo pirão ou pela própria farinha, ainda é o alimento predileto do caboclo. Acrescente-se o feijão, base alimentícia para as populações pobres de todo o Brasil. Só não sei se o feijão foi trazido pelos portugueses ou se já era conhecido pelos índios. Devem existir estudos a respeito disso”, escreveu ela, lembrando que a alimentação básica sertaneja ainda traz muito da dieta primitiva indígena. Remete à carne moqueada dos índios respaldada por farinha, a guarnição que levava tudo à boca. Até as frutas.

“É dessa cozinha que pretendemos nos ocupar, trazendo seus pratos tradicionais que apresentam o aproveitamento do estilo português com os poucos recursos de que dispomos”, continuou Raquel, lembrando que também a cozinha sertaneja é, ao lado das influências indígena e africana, uma grande tropicalização da cozinha portuguesa. A cozinha do colonizador e dono da palavra final sobre o quê e como cozinhar nas casas.

Quando se fala em cozinha elementar, não se quer dizer resultados parcos. Ao contrário. É uma cozinha de poucos elementos. Que precisa, sobremaneira, valorizá-los. Rachel de Queiroz, no volume, escreve com paixão a respeito, lista e ensina receitas suculentas à base doglossário culinário sertanejo: a farinha, o feijão, o milho, o bode e o carneiro, o peru de festa, os patos, as caças, os peixes de rio e os doces de tacho. Além de bebidas nativas como a cajuína, um fermentado delicado de caju.

Digna de estante gourmet, a publicação explica a confecção de pratos cujos nomes trazem em si a invocação de festa: feijoada de peru; galinha de cabidela, “cheia”, recheada com seus miúdos, ou “à portuguesa”, com toucinho; pato com arroz, baião-de-dois, buchada...

Algumas fórmulas listadas são pouco ou nada práticas. Impensáveis para a rotina urbana de pouco espaço e tempo de dedicação à cozinha. Rachel de Queiroz chega mesmo a dar a fórmula de um autêntico queijo de coalho, integrante fundamental de seu paladar afetivo. “Quem conseguia ser o encarregado de apertar o queijo no cincho era sempre o vencedor de uma espécie de batalha campal entre irmãos e primos. Esse vitorioso adquiria o direito de comer as deliciosas aparas laterais do queijo que, confesso, ainda recordo com água na boca”, lembrou ela, ao lado de outros praparos da cozinha da fazenda Não me deixes que entraram irreversivelmente para seu afeto gustativo. Alguém ainda se habilita a fazer seu próprio queijo?

  Fonte - http://www2.uol.com.br/JC/sites/saborjc2007/rachel.html

Por Bruno Albertim

Foto: Alexandre Belém/JC Imagem





QUEIJO DE COALHO

Fórmula recolhida na fazenda “Não me deixes”

Para um pote grande de leite, de boca bem larga, com capacidade para cerca de cinqüenta litros, uma xícara de soro com coalho. Deixa coalhar até marejar o soro em cima. Quando chorar, quebra-se a coalhada rapidamente, cobre-se e deixa-se dez minutos repousando.

Então, com uma cuinha, vai-se colhendo o soro, com cuidado, sem apertar muito a coalhada. Apanha-se o soro até dar meia lata de querosene (mais ou menos dez litros). Leva-se o soro ao fogo, mexendo sempre para não queimar. Quando subir a fervura, começa-se a apanhar a espuma, que depois vai ser posta num saco, onde ficará até o dia seguinte, e então leva uma mão cheia de sal. Assim é feita a nata salgada.

Voltando ao queijo. Quando acabar a espuma, despeja-se o soro fervendo de uma vez na coalhada, que deve ter sido quebrada de novo, rapidamente.

Cobre-se a coalhada e deixa cozinhar por quinze minutos. Então, em cima do bloco de coalhada cozida, joga-se uma xícara de sal e começa-se a rasgar devagarinho, picando em bolinhas do tamanho de um ovo de pomba. Depois de rasgada, cobre-se a vai-se arrumar a prensa.

A coalhada deve ir para a prensa ainda morna. Não bote fria. Vai-se apertando devagar a prensa, duas pessoas, uma de cada lado, até ficar o briquete preso, sem dançar sobre o cincho. Vira-se à tardinha.

No dia seguinte, tira-se, aparam-se as beiradas e bota-se o queijo na tábua. Com oito dias, se estiver sujo, pode-se banhar no soro quente.

Importante: Quando a coalhada cozinha demais, o queijo resseca e até esfarinha. Se ele começar a rachar é porque o leite está muito forte, deve-se por então um pouco de água no leite. O queijo de mamãe levava, mais ou menos, trinta litros de leite (são necessários dez litros de leite para fazer um quilo de queijo.

Fonte - http://www2.uol.com.br/JC/sites/saborjc2007/rachel-queijo.html




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