quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Obras de Monteiro Lobato

O sabor da terra na cozinha de Monteiro Lobato



O criador do Sítio do Picapau Amarelo exaltou a culinária do Brasil e serviu aos leitores os divinos quitutes de Tia Nastácia

Texto: Vladimir Sacchetta

Cidadão-escritor, Monteiro Lobato era a voz do Brasil profundo. Na culinária, assim como fez na literatura, buscou as raízes nacionais mais autênticas. Paulista de Taubaté que revolucionou nossa indústria editorial e despertou a paixão de diversas gerações pelos livros, ele conservou o gosto pela comida caipira, constantemente presente em seus textos. 
Na descrição de um banquete oferecido por Branca de Neve ao Gato de Botas, no livro Fábulas, por exemplo, cita a carne-seca desfiada com angu de farinha de milho, suã de porco com torresmo, mandioquinha frita, lombo com farofa, cuscuz e cambuquira, pratos da melhor tradição culinária de São Paulo e Minas Gerais. Adepto do leitão pururuca, picadinho e feijoada, entre outros petiscos da terra, apreciava a boa comida “mastigável”, que nutre e sustenta. Biscoito de polvilho, sequilhos, curau e paçoca eram seus quitutes da roça preferidos, mas não dispensava goiabada cascão, sagu, banana frita e bolo de fubá. Sem falar na rapadura que ele picava e punha no bolso para ir mastigando durante o dia. E, como se pode ver por uma carta de 1903, enviada ao escritor mineiro Godofredo Rangel, Lobato era adepto de um tira-gosto inusitado:

“Não és capaz, nunca, de adivinhar o que estou comendo. Estou comendo... Tenho vergonha de dizer. Estou comendo um companheiro daquilo que alimentava S. João no deserto: içá torrado!”. Perdendo o medo de parecer estranho, ele divaga, exagerando: “Sabe, Rangel, que o içá torrado é o que no Olimpo grego tinha o nome de ambrosia? Está diante de mim uma latinha de içás torrados que me mandam de Taubaté. Nós, taubateanos, somos comedores de içás”, referindo-se às saúvas caçadas no verão quando saem em revoada. Para Lobato, içá era o caviar do Vale do Paraíba, que ele degustava devagar enquanto escrevia.

Inquieto, com a cabeça o tempo todo na busca de soluções para os grandes problemas de seu País, pouco se sentava à mesa, que rodeava, mordiscando uma coisa aqui, outra ali. Na hora do almoço ou jantar servia-se de feijão com farinha, carne moída com quiabo, picadinho, chuchu e abobrinha. Cozidos em toucinho de porco, esses pratos típicos do interior foram aprovados por Dom João VI na quinta onde, em 1808, teria comido seu primeiro jantar na América, conforme registrado 
em Ideias de Jeca Tatu:
 

“O Rei trava relações com o tutu de feijão e gosta; já a rainha assusta-se com a travessa de bananas de São Tomé assadas. Dois mordomos confabulam apreensivos. E o trono?” Diante das vacilações sobre onde coloca-lo, o “Rei percebe do que se trata e com a boca cheia de lombo resolve: aqui mesmo, ao pé do guarda-comidas”. Junto com a refeição pesada, a falta de boas maneiras é caricaturada: “Finda a janta, o primeiro arroto real ecoa. D. João, contente, de papo cheio, os pés já metidos no chinelão (...) sorve goles de café... e assina a Declaração de Guerra à França”.

O nacionalismo lobatiano, sintomático da vontade incontrolável de transformar o Brasil num país desenvolvido e próspero, levava-o a propor a exploração de plantas e frutas nativas como as grumixamas, espécie de cereja silvestre que, se cultivada a sério, não faria feio frente à similar estrangeira. Adido comercial em Nova Iorque de 1927 a 1930 chamou a atenção para o potencial econômico de produtos como o coco babaçu. De volta ao Brasil, disposto a investir no petróleo e na siderurgia, escreveu ao antropólogo e folclorista potiguar Câmara Cascudo que tomou uma bebida que o entusiasmou. “No dia em que vocês abrirem os olhos para o caju”, disse, “uma belíssima indústria poderá ser criada. Para vinho, por exemplo, creio que é o caju a única fruta capaz de competir com a uva.”

O apego às origens, que o motivou a escrever histórias infantis ambientadas no cenário rural, com personagens inspirados no folclore, estendia-se à gastronomia. Por isso, em A Criação do Estilo, ironizava o afrancesamento deslumbrado das elites e investia contra quem plagiava a culinária européia em detrimento das nossas tradições no fogão: “Dentro de um salão Luiz XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos á francesa, Tomé de Souza e os 400 degredados berram no nosso sangue; Fernão Dias geme; Tibiriçá pinoteia e Henrique Dias revê o seu pigmentozinho de contribuição.”

Este era o caso de Freitas Vale. Representante de uma aristocracia espelhada em Paris, o Senador-poeta do Partido Republicano Paulista (PRP) apurava o paladar em sofisticados banquetes. Na Villa Kyrial, seu efervescente salão artístico-literário, onde não faltavam étoiles de caviar e côtelettes enigmatiques, as refeições, assim como os versos simbolistas, tinham um tempero francês severamente criticado por Lobato. Em ‘Curioso caso de materialização’, compilado em Idéias de Jeca Tatu, convoca literariamente o escritor português Camilo Castelo Branco para questionar o Trianon, situado num belvedere na Avenida Paulista, onde seria erguido o Museu de Arte de São Paulo (MASP):

“Batizar uma casa de pasto, cá na América, com o nome dum antigo castelo francês, sabe-me a disparate”, alfinetou o escritor luso, pela pena de Lobato, e sugeriu que o nome deveria ser A comedoria paulistana, ou Aos bebes da Avenida, ou À grossa pagodeira, combinando com as funções do negócio. E acrescentava que, outrora, juntavam-se às refeições somente um qualificativo que só dizia respeito ao seu valor culinário ou nutriente – jantar suculento. “Mas este ‘jantar chique sabe-me a ‘laranja sutil’, a ‘pão elegante’, a ‘ananás janota’, a ‘feijoada distinta de maneiras’, a ‘batata grácil’ e quejandas asnidades”.

“É a elegância, mestre, é o requinte!”, retruca Lobato na voz do interlocutor, explicando que “Creme Princesse não passa de uma gemada qualquer e que Suprême de Turbot é uma papa de cação de Santos”. Aturdido, Castelo Branco retruca: “Mas, amigo, se o que vocês comem é porco e o arroz e se o fato de dar o nome de marcassin ao porco, e riz ao arroz e four ao forno, não melhora o sabor do quitute, por que esta mentira da desnaturalização dos pitéus?”

A resposta vem rápida: “Ah, mestre! Como estamos longe do vosso bom senso! A cultura refinou-nos. A civilização cresce em Vila Mariana como mamona”, diz, referindo-se ao bairro onde ficava a Villa Kyrial de Freitas Vale. “Adquirimos tantogout que, por instinto, o nosso organismo, num diner elegante, repeliria (...) um plat nomeado à portuguesa, charramente: arroz de forno, leitão assado”. Ao final da conversa, um Camilo muito surpreso ainda pergunta se os paulistanos, então, não podiam comer o que queriam.

“Oh, não! Comer o que se quer é regionalismo sórdido. Come-se o que é de bom tom comer. Manducar leitão assado, picadinho, feijoada, pamonha de milho verde, moqueca e outros petiscos da terra é uma vergonha tão grande como pintar paisagens locais, romancear tragédias do meio, poetar sentimentos do povo”, ironiza Lobato, ressaltando que, na altíssima roda, até o uso da língua portuguesa estava em vias de se tornar ignominioso. “Que dirá o estrangeiro se nos pilhar a comer (que horror, meu Deus!) tutu com torresmo, esta vergonhosa pitança regional, ou coisas semelhantes?”.

Na contramão da tendência de imitar Paris, Monteiro Lobato ensina, na sua literatura infantil, que a culinária nacional é uma das mais saborosas do planeta. Principalmente quando saída do fogão de Tia Nastácia que sabia manejar o “violino do gostoso”, tirar dele mil harmonias, transformando o mais simples guisado em perfeitas obras primas. Para fazer frente aos “pratos boniteza” para “comer com os olhos”, servidos no casamento de Branca de Neve, como faisão recheado de línguas de rouxinol, javali assado ao molho de néctar furtado aos deuses do Olimpo e omeletes de ovos da Fênix, Tia Nastácia oferecia “pratos-gostosura”: mocotó à baiana, bem apimentado, quibebe e costela com angu de fubá. Assim, de Heródoto, o historiador grego, a São Jorge, para quem ela teve a “maior honra” de passar uma temporada cozinhando na Lua, não havia quem resistisse à magia de sua comida.

Célebres, os bolinhos de polvilho aparecem na maioria dos livros para crianças. Como conta Pedrinho em O Saci, quem os comia uma vez não podia “nem sequer sentir o cheiro de bolos feitos por outras cozinheiras”. 

De fato, não há que não fique com água na boca ao ler as páginas que falam dos bolinhos. Mal saíam da frigideira eram servidos com café fresquinho, em cenas tão aromáticas como apetitosas. Sua fama alastrou-se de tal modo que a quituteira acabou seqüestrada pelo Minotauro para garantir seu suprimento permanente. Mas, no final, acabaram por salva-la de ser devorada pelo monstro, rendido à delícia produzida no labirinto de Creta.

Ainda que apavorada, ao ver o fogão e muita farinha, Nastácia teve a idéia de fritar uns bolinhos. “Me lembrei de todos lá no sitio e disse comigo: Vou fazer pela última vez o que eles gostavam tanto, não para comer, porque numa ocasião dessas o estômago da gente até some”. De repente, a fome apertou e o Minotauro foi chegando, lambendo os beiços. Mas aconteceu um milagre.”Viu a peneira com os bolinhos e tirou um. Provou. Ah, que cara ele fez! Aqueles olhos de coisa ruim brilharam. Pegou outro, e outro e outro, e comeu a peneirada inteira. Depois me apontou para o fogão num gesto que entendi que era pra fazer mais”. Desde aquele dia ela não parou, pois o apetite do homem boi não tinha fim. E tantas peneiradas comeu que foi engordando, engordando, a ponto de acabar completamente manso, esquecido até da mania de comer gente.

Outra que se encantou com os bolinhos foi Alice, a do País das Maravilhas. Depois de experimentar um, no livro Memórias da Emília, arregalou os olhos e pediu a receita. “Receita, dou; mas a questão não está na receita – está no jeitinho de fazer”, a cozinheira respondeu. 

São justamente esses conhecimentos e especialidades que fazem de Tia Nastácia a detentora do saber popular e da tradição oral na obra lobatiana. Ela representa aqueles que, sem ter realizado um estudo formal, adquirem no cotidiano um aprendizado que não se encontra nos manuais ou enciclopédias. E que nem por isso são menos úteis e importantes como ilustra a observação de Emília em suas Memórias:

“Ciência e mais coisas dos livros, isso ela ignora completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sábia. Para um tempero de lombo, um frango assado, um bolinho, para curar uma cortadura, para remendar meu pé quando a macela está fugindo, para lavar e passar roupa – para as mil coisas de todos os dias é uma danada!”.

Uma verdadeira fada para toda sorte de doces e quitutes, como a boneca fazia questão de recordar, Tia Nastácia era imbatível nos lambarizinhos fritos e no mexido de galinha que, de tão cheiroso, fez o barão de Münchausen, em O Pó de Pirlimpimpim, perder a cerimônia, sentar-se em torno do farnel levado por Dona Benta e dar cabo de tudo quase sozinho. D. Quixote, porém, teve que se contentar só com o café cheiroso, pois os bolinhos Sancho Pança comeu todos – junto com o quem mais havia na copa, incluindo o pernil de porco e a pamonha de milho verde da sobremesa. Ainda pior que Rabicó, o leitão adotado pelas crianças do Sítio, o fiel escudeiro reafirmava, em O Picapau Amarelo, sua gulodice e uma admiração sem precedentes: “Nasci para comer, e nesta casa os petiscos têm qualquer coisa que bole no coração da gente. Acredite, senhora Nastácia, que cozinheira como vosmecê nunca jamais houve no mundo – nem haverá. Sou entendidíssimo em toda sorte de comidas, gordas ou magras, de sal ou açúcar, de forno ou fogão, e juro sobre a lança de meu amo que petisqueiras como as daqui, nem no céu”.

Embora nacionalista, Monteiro Lobato era um cidadão do mundo. Por meio das viagens aos Estados Unidos e à Argentina ou pelas leituras sistemáticas dos mais variados assuntos, o escritor detinha um vasto conhecimento da história da Humanidade. Este lado cosmopolita de Lobato torna-se patente em Geografia de Dona Benta, no qual revela os hábitos alimentares e as práticas culinárias dos habitantes de regiões brasileiras e de longínquos rincões do globo terrestre. Nele, a diversidade dos aromas e sabores encontrados pela turma do Sítio na volta ao redor do planeta, são experimentados pela cozinheira “caipira” sempre aberta a novas experiências.


CDROM Infantil Geografia da Dona Benta Sítio do Pica pau a

Em um das passagens, Tia Nastácia utiliza na garoupa que Pedrinho fisgou em alto-mar um ingrediente especial comprado durante a escala na Bahia. “Vou fazê-la recheadinha, com farofa e azeite de dendê...” Dali sairia para o jantar um prato muito mais gostoso do que os peixes voadores do Mar das Antilhas colhidos no tombadilho do navio.

Mais adiante, em Manaus, Tia Nastácia aproveitou para encher a despensa do brigue de postas de pirarucu seco, manteiga de tartaruga e bastões de guaraná preparados pelos índios Maués. Levou ainda várias latas de um doce feito de bacuri que, para sorvete, não tem melhor. Alguns parágrafos depois, a turma encontra-se em Xangai. Ali, ao degustar uma sopa com ninhos de andorinha, Tia Nastácia arregalou os olhos, mas provou a iguaria, acrescentando: “O Visconde me trouxe, sabem o quê? Brotos de bambu! Disse que é o palmito daqui. Eu experimentei – fiz um guisado. Pois não é que é gostosinho? Este mundo, sinhá, este mundo...”.

O melhor prêmio que Tia Nastácia dava aos meninos nas grandes ocasiões, contudo, não eram comidas exóticas feitas de ingredientes inusitados. Este consistia numa gemada prosaica, mas tão bem batida que ficava amarela feito manteiga e macia como veludo. Vendo Pedrinho e Narizinho raspar a tigela às ‘colheradinhas’, ‘poupadamente’, Emilia e o Visconde entreolhavam-se, entristecendo-se de não serem gente de verdade – gente que come... Só nessas ocasiões a boneca falante sentia inveja da espécie humana – o que não a impediu de ter a idéia brilhante de fazer o livro comestível. Fundindo a fome de saber com a fome fisiológica, em A reforma da Natureza Emília propunha que fossem impressos em papel fabricado de trigo e muito bem temperados. A tinta inofensiva à saúde seria estudada pelos químicos. “O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas; lê uma rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado.”

Além disso, cada capítulo teria um sabor diferente. Às primeiras páginas com gosto de sopa, seguiriam-se as de salada, assado, arroz e tutu de feijão com torresmo. As últimas seriam a sobremesa – manjar branco, pudim de laranja, doce de batata. As folhas do índice fariam às vezes do cafezinho. “Dizem que o livro é o pão do espírito. Porque não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente com o pão e o leite”. Quem soubesse ler, lia, senão bastava comê-lo. “Desse modo o livro pode ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos”. 
Texto: Vladimir Sacchetta
lobato.globo.com

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